terça-feira, 30 de novembro de 2010

Chico Buarque

O camareiro filipino que falava malaio

Se lhes pedirem para definir em quatro vocábulos o que é literatura, respondam: “Literatura é escolher palavras”. 

Leiam mais um trecho de Budapeste, de Chico Buarque, que levou o Jabuti de “Livro de Ficção do Ano” em 2004, embora tenha ficado em terceiro na categoria “Romance”.  estaco algumas palavras em negrito. 

Meu quarto era abafado, a janela era um vidro fixo, a paisagem eram duas fileiras de postes de luz numa avenida reta e sem fim. Senti vontade de ligar para alguém no Brasil, mas o telefone estava bloqueado. Passei a noite olhando para o teto, e quando bateram aporta com o café-da-manhã, senti imensa gratidão, fiz questão de que o camareiro se sentasse comigo; era filipino, mal falava inglês, me ensinou umas palavras de malaio e tinha mãos muito pequenas, que enchi de moedas. Eu estava emotivo, desci à sala ansioso para rever os colegas, e a partir daquela manhã as reuniões decorriam quase em silêncio, as pessoas prostradas nos assentos. Os poucos que se dispunham a tomar a palavra falavam baixo, longe do microfone, lembrando as agruras de um ofício de que tantos desertam, em busca de fortuna e popularidade.

Comento
Qualquer um, Chico ou não, que empregue aquela seqüência de “eras”  é um analfabeto em prosa. Literatura é como pintura: as pinceladas têm de ter um propósito. Existe composição. É como música: as palavras são notas. É como escultura: as palavras são volumes e brincam com o equilíbrio. Numa seqüência que se pretende paralelística, se o “quarto” (substantivo) era “abafado” (adjetivo), a janela (substantivo) jamais poderia ser “um vidro” (outro substantivo). Muito bem! Ainda que ignorasse o rigor necessário do paralelismo, cumpriria ao menos recorrer à elipse: “Pra que tanto ‘era’?”, pergunta o meu coração.

Mas o divertido mesmo foi apontado pelo leitor João Goulart. Antes, uma historinha. Aos 49 anjos, há duas coisas em mim que seguem tão pujantes como quando tinha 18: uma delas é a memória. Vi uma entrevista de Chico, há muitos anos, em que a repórter — embevecida, claro! — lhe perguntava como compôs a música Passaredo. É uma em que ele vai citando um monte de passarinhos. Feito Machado de Assis explicando a psicologia da composição no conto “O Cônego ou Metafísica do Estilo”, o sambista explicou: Francis Hime havia lhe passado a melodia, e ele pegou um dicionário e foi caçando nomes de passarinho e rimando e ritmando… A moça fez um ar meio decepcionado.

Voltemos. Chico precisava de um ser meio exótico na sua cena. Deve ser pensado: “Por que não um camareiro filipino de mãos pequenas?”, que o narrador, de modo muito verossímil, convida para bater papo. Certo. Exotismo e verossimilhança podem ser tudo em literatura, não é mesmo? O curioso é que o rapaz não falava nem inglês, uma das línguas oficiais das Filipinas, nem filipino (tagalo), que é a outra. Falava malaio, língua muito falada na… Malásia. Pertencem ao mesmo grupo lingüístico, mas são coisas distintas. Por que malaio? O livro não explica. Deve ter sido o método de composição de Passaredo, só que com pesquisa errada.
Vai um Jabuti ou não vai?

Reinaldo Azevedo - 30/11/2010 - editado por GD

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